Por Bruno Faro
Consumo do polvo e suas ovas: tradições e tentativas de criação em cativeiro
Em 2007, enquanto trabalhava em um charmoso bistrô francês no Rio de Janeiro, tive a oportunidade de colaborar com Tiago, um ex-auxiliar de sushiman de um dos mais renomados restaurantes de cozinha japonesa na cidade. Essa parceria me proporcionou uma experiência única, onde tive verdadeiras aulas de cozinha quando antes frenquentei como cliente e depois como um dos cozinheiros do local.
Um dos pratos em destaque no nosso bistrô continha polvo, o que me levava a uma rotina semanal de limpeza e preparo desse incrível animal. Em um desses dias, enquanto realizava essa tarefa, Tiago fez uma pergunta: "Você já viu as ovas do polvo?" Ele me mostrou uma bolsa branca, em meio a outros órgãos. Em alguns polvos era bem grande, em outros era menor e em alguns era possível notar que estava em processo inicial ainda sem textura. Tiago levou essas bolsas de ovas à cozinha e as preparou em fogo baixo, com um toque de saquê. A fina membrana que protege as ovas se rompeu com o calor, e as bolsas se abriram, revelando algo que se assemelhava a couve-flor. Embora as ovas fossem pequenas, elas permaneciam juntas, formando uma estrutura semelhante a quando cozinhamos ovas de tainha ou robalo.
Após adquirirem consistência, retiramos do fogo e deixamos esfriar. Cortamos finas fatias e provamos o sabor puro. Lembro-me da surpresa ao sentir um equilíbrio natural de salinidade e um sutil toque adocicado. O sabor evocava o do próprio polvo, e as ovas podiam ser preparadas com diversos temperos, especialmente aqueles da culinária japonesa, que dominam o conhecimento sobre o seu consumo e combinações.
"Por acaso, cruzei com esse ingrediente, e espero que ele ganhe espaço nos restaurante que buscam apresentar itens diferenciados aos seus clientes."
No entanto, acabei deixando essa experiência de lado por um tempo, até 2009, quando tive a oportunidade de estagiar em Lima, no Peru. Durante minha permanência na Cebichería La Mar, fui designado para o setor de peixes. Em um dia, enquanto trabalhava com o polvo fresco e inteiro, limpamos cerca de 100 kg desses animais. Fiquei surpreso ao perguntar aos colegas se conheciam as ovas do polvo e receber uma resposta negativa.
Intrigantemente, acreditava que um produto tão fascinante fosse mais difundido, especialmente em países com uma forte cultura de frutos do mar. Algumas semanas depois, enquanto estava na praça dos Cebiches, comentei com um dos cebicheiros sobre as ovas do polvo, para minha surpresa, ele também não tinha conhecimento delas.
Conseguimos algumas unidades e as preparamos para a equipe. Todos ficaram encantados e ouvi expressões como "Como alguém do Brasil poderia conhecer isso antes de nós?".
Isso exemplifica como o conhecimento muitas vezes surge de maneira espontânea, quando nos conectamos com pessoas de diferentes origens e referências.
Lá estava eu, ensinando técnicas culinárias a chefs brilhantes, aprendidas com um grande professor. No mesmo dia, o restaurante estava cheio, com uma longa fila de espera. A equipe dos cebiches recebeu a tarefa de preparar um aperitivo cortesia para os clientes que aguardavam por uma mesa. Sem hesitar, preparamos uma Causa de ova de polvo e leche de tigre com pimentas amarelas. Lembro-me da surpresa nos rostos dos garçons ao verem as bandejas e ouvirem a expressão "Hueveras de pulpo" (ovas de polvo). O aperitivo foi um grande sucesso.
Embora tenha perdido o contato com Tiago e a equipe da Cebichería por mais de 15 anos, a minha perspectiva em relação ao polvo e as ovas mudou, e acredito que o mesmo ocorreu com meus queridos colegas peruanos.
“Todas as iguarias começam com alguém corajoso e curioso que as experimenta de várias maneiras e compartilha seu conhecimento."
A ideia e sua execução:
Em 2022, recebi o convite para ministrar uma palestra no Congresso Raízes, cujo tema ia desde o solo até a mesa. Fiquei lisonjeado e refleti profundamente sobre o que gostaria de apresentar. Lembro-me de frequentar congressos de gastronomia e me interessar pelas palestras que abordavam produtos desconhecidos, o que me levou à decisão de apresentar as ovas do polvo.
Nesse ano, o congresso seguiu um roteiro interessante, que uniu chefs a produtores. Fui designado para ministrar uma palestra ao lado de um chef que admiro profundamente, Gabriel Aguilar. Por sugestão dele, convidamos Bianca, do Sítio Terra Santa, para compartilhar seu conhecimento sobre a produção de queijos de cabra em Nova Trento, Santa Catarina. Decidimos criar dois aperitivos para que a plateia pudesse degustar. Em um deles, incluímos a ova de polvo, que defumamos e desidratamos lentamente, lembrando o sabor do katsuobushi. Ralamos as ovas e as utilizamos para finalizar um tartare de atum com iogurte de cabra.
O consumo do polvo e suas ovas:
O polvo pertence à classe dos cefalópodes e ao filo dos moluscos, que literalmente se traduz como "cabeça com pés". Nessa classe, também se enquadram espécies como lulas, náutilos e sépias, totalizando mais de 700 espécies na ordem Octopoda.
Esses animais são conhecidos por usar uma tinta à base de melanina para distrair predadores, possuir habilidades de regeneração de tentáculos, capacidade de mimetismo e camuflagem. Entre as espécies, a Octopoda vulgaris é a mais consumida, inclusive no Brasil.
O polvo é considerado o invertebrado mais inteligente do mundo, superando muitos vertebrados. Há relatos de polvos desmontando peças em aquários, escapando de cativeiros e até desenvolvendo laços afetivos com seres humanos, como ilustrado no famoso documentário "Professor Polvo".
Apesar das diferenças notáveis entre nossos cérebros, o polvo possui um notável sistema de memória e aprendizado, com uma concentração significativa de neurônios distribuída pelos tentáculos, tornando-o, de certa forma, um "cérebro ambulante". Seus tentáculos são altamente sensíveis a aromas e texturas variadas.
Normalmente, a pesca de polvo é realizada com o uso de armadilhas conhecidas como "potes" que são distribuídas no leito oceânico para atrair os polvos, que as usam como abrigo.
A alta demanda por sua carne estimulou diversas tentativas de criação em cativeiro, um processo conhecido como aquicultura. Os defensores desse método argumentam que a criação de polvos em cativeiro é a única maneira de garantir a sustentabilidade e atender à demanda crescente. Alguns aspectos do ciclo de vida do polvo o tornam um candidato promissor para a aquicultura. Como o salmão, os polvos têm uma vida curta e crescem rapidamente. A maioria das espécies vive de um a dois anos, enquanto algumas variedades maiores podem chegar a três a cinco anos de idade.
O consumo do polvo tem aumentado consideravelmente, com mais de 420 mil toneladas pescadas no último ano, de acordo com a FAO.
No entanto, a principal barreira para a criação em cativeiro reside no fato de que os polvos são animais inteligentes e curiosos, que precisam cons-tantemente de estímulos e ex-ploração do ambiente. Um obstáculo crítico se encontra na fase inicial do ciclo de vida, quando o polvo é uma delicada paralarva, um organismo plan-ctônico. Na natureza, os polvos se reproduzem sexualmente, com as fêmeas frequentemente construindo ninhos para proteger os filhotes, após isso elas não se alimentam mais e morrem no final do processo. Entre os cefalópodes, apenas os nautiloides se reproduzem continuamente.
O maior desafio na criação em cativeiro é manter o polvo vivo nesse estágio inicial, uma vez que o cuidado parental não está presente. As tentativas de criação em cativeiro também enfrentam críticas quanto ao estresse, à monotonia do confinamento, às taxas elevadas de mortalidade, agressão, infecções parasitárias e problemas digestivos associados à produção em larga escala.
Portanto, é provável que continuemos a depender da pesca, mesmo que seja em um ponto insustentável que requeira períodos de defeso e, naturalmente, leve ao aumento dos preços, transformando o polvo em uma iguaria cada vez mais exclusiva. Grandes consumidores, como a Coreia do Sul e a Espanha, dependem das importações.
Por exemplo, a Espanha pesca apenas 20% do que consome. O consumo das ovas do polvo deve ser visto como uma maneira de aproveitar ao máximo o animal e homenageá-lo de maneira distinta. Não se trata de procurar as ovas, mas de encontrá-las nos polvos que as carregam.
Depois de me propor a apresentar as ovas do polvo no congresso, comecei a observar cada polvo que encontrava, conversando com amigos chefs. No entanto, somente um deles conseguiu me fornecer três ovas. Das três, duas estavam completamente formadas e foram usadas na degustação.
Essa dificuldade se deveu, em parte, à sazonalidade do produto. Conversei com pescadores que, ao verem fotos das bolsas de ovas, em sua maioria, não tinham conhecimento da possibilidade de consumo. Eles me explicaram que era mais fácil encontrar as ovas em meses quentes e mais difícil durante outras épocas do ano. Portanto, a ova de polvo deve ser vista como um produto sazonal do mar, semelhante a muitos outros.
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