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Cauim e o etnocídio

Por Fernado Gondenstein



Uma das mais importantes bebidas indígenas brasileira, o Cauim virou tema de discussão no Mixology News que abriu as portas para Fernando Goldenstein, sócio fundador da Companhia dos Fermentados compartilhar sua visão.


Estamos em tempos de queimadas e temperaturas extremas, desmatamento das florestas brasileiras para garimpo, mineração e plantio de commodities, votação do marco temporal das terras indígenas e notícias pesarosas de todo tipo de violência física e psicológica secular contra os povos originários. Mais do que nunca, se debruçar sobre as questões culturais e legais relativas à manutenção, divulgação e usos desta vasta cultura é um exercício de cidadania.


A apropriação de termos indígenas para registro de marcas é um exemplo de apropriação indevido, que não deveria acontecer. Porém é mais comum que parece, embora muitas vezes não nos demos conta. Vejamos, por exemplo, um caso relacionado à bebida tradicional cauim.


Hoje, cerveja é a bebida mais consumida no Brasil, mas não foi assim sempre. Cauim, caiçuma, caxiri, mocororó, masato, taruba e chicha são exemplos de categorias de bebidas consumidas há séculos, talvez milênios. Já eram anciãos quando foi promulgada a primeira “lei da pureza” – que ainda hoje baseia a definição de “cerveja” no Brasil. Todavia, não encontramos nenhuma delas no mercado.


Até aí, tudo bem. As bebidas tradicionais podem não estar nas gôndolas dos mercados pois não “descem redondo”, não satisfazem nosso paladar “europeu” (lapidado com esmero pela indústria nas últimas décadas) ou por qualquer outro motivo.


Cauim, por exemplo, é uma bebida alcoólica produzida a base de mandioca, com processos variados: sacarificada por insalivação ou com bolores selvagens, adição de frutas ou outros botânicos etc. Daí resultam diferentes bebidas assemelhadas, como caxiri e pajuarú, entre outros. Em nenhum deles há adição de malte. Há um motivo para isso: o malte da cerveja deriva de carboidratos exóticos, seja de cevada, trigo ou centeio, que vêm de outro continente, outra realidade botânica, outra cultura. Assim como o lúpulo.


Sobre o uso deste nome como marca: imagine você entrar num mercado e encontrar um vinho cuja marca se chama “cerveja”. Não parece plausível né? Nem água, chocolate, carro, sashimi, água, cachorro, Iemanjá ou Deus. Sabe por quê? São o que chamamos de expressões de uso comum. Pensa numa marca de catchup chamada “mostarda”. Não funciona né?


De fato, a legislação brasileira não permite que sejam regis-tradas expressões de uso comum. De acordo com o artigo 124 da Lei de Propriedade Industrial, não são registráveis marcas com “sinal de caráter genérico, neces-sário, comum, vulgar ou simplesmente descritivo, quando tiver relação com o produto (…)”


Mas esta regra nem sempre é respeitada e as vezes a gente encontra aberrações que, de tão marketizadas, acabam parecendo normais, como por exemplo encontrar uma cerveja com nome de uma bebida tradicional dos povos originários, caso do cauim.


É claro que no dia a dia a gente produz e usa um monte de alimentos com nomes indígenas. Puba, pirão, beiju, moqueca, tacacá, canjica, paçoca, tucupi, tapioca, açaí. Vivemos um sincretismo histórico e é impossível falar de gastronomia brasileira sem a presença preponderante, protagonista da culinária indígena.

Fazemos, muitas vezes de forma inconsciente, apropriação cultural e tomamos liberdades de criar variações das receitas que chegaram até nós, na maior parte das vezes, via tradição oral. O mesmo acontece com o kimchi, chucrute, masala (“curry”) e tantos outros preparos tradicionais de outras culturas e regiões, que ninguém em sã consciência irá se atrever a afirmar que existe só uma receita escrita em uma tábua de pedra.


Neste sentido, o uso em si do nome não seria necessariamente um problema. Pelo contrário. No caso da cerveja, surgiu (e serve) como divulgação da cultura (pouca gente ouviu o leu o nome “cauim” fora do contexto da gôndola do supermercado), homenagem e recuperação da memória histórica de uma bebida fermentada a base de mandioca. Ainda que o líquido não se trate do cauim original, pelo menos ilumina, devolve à vida um nome, uma técnica, que de outra forma estaria relegada aos recônditos do Brasil profundo.


"Cauim, por exemplo, é uma bebida alcoólica produzida a base de mandioca, com processos variados: sacarificada por insalivação ou com bolores selvagens, adição de frutas ou outros botânicos etc."



O problema surge quando o nome é registrado como marca passa a “pertencer” à indústria.

Não obstante, nem o cauim nem nenhuma outra bebida indígena está prevista na legislação brasileira. Lá, elas não existem. Não é que tenham sido suprimidas: sequer passaram a existir nos “meios legais”. Apagão cultural ensurdecedor agravado pela apropriação totalmente irresponsável e descabida do nome.


O censo de 2022 constatou que naquele ano a população indígena representava 0,83% do Ototal da população brasileira. Poderia se utilizar este fato histórico (genocídio) para afirmar que “cauim” não é um termo comum (pois é pouco utilizado) e por isso não haveria problema em apropriá-lo para uma marca de uma bebida de origem europeia? Neste sentido, o INPI poderia ter concedido o registro por “novidade relativa”? Seria um argumento tétrico que aumentaria ainda mais a permanente fragilidade dos povos originários, sabendo da história por trás dos 0,83%.



Se uma comunidade indígena desejar produzir e comercializar o seu cauim não vai poder utilizar o nome ancestral, pois a marca está registrada para um dos maiores conglomerados cervejeiros do mundo. Esta reparação (liberação do uso para que o termo possa ser utilizado) deve ser feita com urgência, de preferência com envolvimento de lideranças indígenas..

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