Por Fabiana Mortimer

Construção de uma Gastronomia Brasileira Contemporânea
Ao longo da última década, a gastronomia ganhou um papel crucial na sociedade, indo além das considerações nutricionais e sensoriais.
O movimento contemporâneo da gastronomia adiciona uma dimensão ética à culinária, centrada na escolha de ingredientes orgânicos, sustentáveis em sua produção e distribuição, bem como benéficos para toda a cadeia ligada à gastronomia.
Nesse cenário, o Brasil se destaca devido à sua vasta biodiversidade de frutas, especiarias, ervas aromáticas, algas, fungos, insetos e flores, espalhados pelos seis biomas que compõem o território brasileiro.
Núcleo de Estudos em Gastronomia (NEG) é um grupo de pesquisa do IFSC que, por meio de suas ações, visa desenvolver produções gastronômicas sustentáveis. Isso é feito através do uso de ingredientes nativos do Brasil, do resgate de saberes e práticas tradicionais, da incorporação de técnicas contemporâneas e do apoio à cadeia de produção de pequenos agricultores.
Por quase uma década, o NEG tem trabalhado na valorização das frutas nativas da Mata Atlântica na gastronomia. Seu esforço envolve o desenvolvimento de produtos e a realização de ações de capacitação em escolas e centros de pesquisa, entre profissionais da gastronomia e consumidores em geral. Durante esse tempo, frutas nativas, como a goiaba serrana (Acca sellowiana), a uvaia (Eugenia pyriformis), a gabiroba (Campomanesia xanthocarpa), a jabuticaba (Plinia cauliflora), a grumixama (Eugenia brasiliensis), o butiá (Butia catarinensis), o araçá (Psidium cattleianum) e até ingredientes como lírios, flor de trevo, cacau cabruca, ostras nativas, entre outros, têm sido incorporados em pratos doces e salgados.
O objetivo é incentivar o consumo desses ingredientes para promover sua preservação, à medida que nossas florestas enfrentam ameaças devido à urbanização desordenada, à produção em larga escala e à falta de ações de conservação ambiental
Atualmente, apenas 8% da Mata Atlântica original do Brasil permanece, tornando-a um dos biomas mais ameaçados do país. A gastronomia, por meio de sua criatividade, desempenha um papel fundamental na promoção de ações inovadoras. Os chefs e profissionais do setor comunicam a importância da preservação dos biomas brasileiros por meio de suas criações, que não apenas definem, mas também elevam as expectativas em relação ao sabor e à experiência.A cozinha criativa contemporânea busca impactar os sentidos, além de incorporar responsabilidade em suas práticas culinárias, abordando questões sociais e ambientais atuais.
Durante o Congresso Raízes de 2021 e 2022, o NEG esteve presente, demonstrando as possibilidades de utilização de ingredientes da Mata Atlântica, como frutas nativas, plantas alimentícias não convencionais, saberes tradicionais e ingredientes adaptados ao nosso território.
Em 2021, o foco das apresentações foi nas sobremesas. O tema abordado foi o uso de frutas nativas em sobremesas contemporâneas, destacando a potencialidade da nossa biodiversidade e as novas tendências gastronômicas, como a confeitaria inclusiva.
Duas das sobremesas concebidas pela Professora Alice Novaes foram preparadas sem produtos de origem animal e ingredientes refinados, fazendo uso de farinhas alternativas, sem glúten e integrais. A inspiração veio das cores da floresta Mata Atlântica, das frutas douradas do bioma, como a gabiroba, o araçá amarelo, o maracujá, a uvaia e o butiá, além do chocolate "bean to bar" produzido a partir do cacau agroflorestal do sul da Bahia.
Figura 01 Figura 02 Figura 03 Figura 04
"A proposta era desafiadora, mas também uma oportunidade para destacar a necessidade de refletir e mudar nosso sistema alimentar e nossas prioridades."
O prato "Caminhos da floresta," da figura 01, que inclui uma ganache de maracujá, bolo de sarraceno e erva mate, creme de gabiroba, geleia de uvaia integral, geleia de araçá amarelo, e uma espuma de butiá com galhos de chocolate e flores que mimetizam as copas das árvores, permite identificar as inúmeras possibilidades de uso das frutas nativas da Mata Atlântica.
A sobremesa, “caixa da biodiversidade”, figura 02,apresenta as frutas nativas da Mata Atlântica agregadas ao caramelo, nibs de cacau e cachaça artesanal.
No trabalho desenvolvido pela professora Mariana Martelli a uvaia e goiaba serrana são apresentadas, usando a totalidade da fruta. Na verrine de iogurte de ovelha da serra com compota de uvaia, figura 03, a mistura dos ingredientes res-salta a acidez complementar e mostra que a simplicidade quando realizada com ingredientes de qualidade possibilita harmonia e beleza das criações.
A goiaba serrana, ressaltada na sobremesa, “Rainha da Serra Catarinense”, figura 04, possibilita a utilização integral da fruta na forma de mousse, gelificado e tuiles.
No ano de 2022, as inspirações para as criações do NEG dedicado ao evento Raízes vieram da professora Fabiana Mortimer Amaral, que propôs conectar o litoral à serra catarinense, incorporando as ostras nativas de Florianópolis (Crassostrea gasar) e as frutas nativas da Mata Atlântica, como goiaba serrana, gabiroba e uvaia. Nessas preparações, foram incluídas plantas alimentícias não convencionais, como ora-pró-nobis, lírio do brejo, salicórnia e flores de trevo.
Para valorizar e preservar os saberes e fazeres de Santa Cata-rina, as ostras foram servidas em cestas de cipó, uma técnica tradicional da comunidade do Sertão do Ribeirão, utilizada há mais de 100 anos. O prato da figura 05 foi inspirado nas oferendas a Iemanjá e recebeu o nome "Oferenda para Iemanjá"
Figura 05 Figura 06
Nessa criação, as ostras desconchadas foram delicadamente dispostas sobre folhas de ora-pro-nobis branqueadas, acompanhadas por pequenos cubos de compota de goiaba serrana, preparada com o meso-carpo da fruta.
O prato também inclui fatias de queijo serrano e é finalizado com pó da casca da goiaba serrana, que adiciona notas levemente cítricas e uma intensa fragrância de fruta. As ostras são levadas ao forno e servidas quentes, com um molho apimentado de uvaia.
A segunda criação com ostras, figura 06, chamada "Ostras Abençoadas", faz referência ao butiá, um fruto que é considerado uma árvore sagrada na cultura tupi-guarani. Em Santa Catarina, o butiá é tradicionalmente usado para aromatizar a cachaça, sendo a cachaça de butiá um produto de identidade cultural do estado. Nesse prato, as ostras, depois de desconchadas, são cozidas na técnica de pocher em uma mistura de imbiriba (Xylopia spp), cachaça de butiá e poejo (Mentha pulegium). Após o cozimento, o líquido é filtrado e emulsionado com manteiga.
As ostras são dispostas nas conchas e regadas com o molho de manteiga aromatizado com a cachaça de butiá e especiarias. Para adicionar frescor e crocância, é incluída raiz de lírio do brejo ralada e frita, e o prato é finalizado com gabiroba fresca e salicórnia (Salicornia europaea), que contribuem com picância e sal à criação.
"O estudo da cultura indígena nativa brasileira tem fornecido referências gastronômicas valiosas e visa preservar as raízes dos povos tradicionais."
Por meio do desenvolvimento de produtos agroalimentares e das produções gastronômicas, o NEG almeja manter as tradições dos povos nativos, valorizar os saberes e fazeres tradicionais, promover o conhecimento popular e impulsionar a cadeia de frutas ervas e especiarias nativas dos biomas brasileiros. Essa abordagem busca promover uma comercialização que contribua para a preservação das florestas e fortaleça o comércio justo e sustentável.
A sustentabilidade é uma questão multifacetada, na qual o sistema de produção de alimentos e nossas dietas desempenham um papel crucial.
Alcançar um futuro alimentar saudável e sustentável é uma ques-tão urgente que requer esforços co-laborativos globais e individuais.
O NEG reconhece a necessidade de estimular o debate sobre as práticas de turismo, alimentação e gastro-nomia para apoiar o desenvolvimento de uma produção e consumo de alimentos mais sustentável do ponto de vista ambiental, social, cultural e econômico.
CONSTRUÇÃO DE UMA GASTRONOMIA BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA. NEG- NÚCLEO DE ESTUDOS EM GASTRONOMIA
INSTITUTO FEDERAL DE EDUCAÇÃO CIÊNCIA E TECNOLOGIA DE SANTA CATARINA - IFSCCAMPUS FLORIANÓPOLIS CONTINENTE
FABIANA MORTIMER AMARAL, ALICE NOVAES SOUTHGATE, MARIANA MARTELLI
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